Um dia após a morte da escritora Rachel de Queiroz, no dia 4 de novembro de 2003, diversos jornais, no país inteiro, dedicaram inúmeras páginas, rememorando ou enaltecendo, as obras e conquistas da escritora, além de cederem espaços para que intelectuais e políticos dessem depoimentos sobre ela. Esses textos e as imagens publicados, quando analisados criticamente, são capazes de expor ideias associadas à celebração da autora, mostrando que vários sentidos estão escondidos nos discursos e imaginários expostos. Afinal, essa celebração biográfica está ligada, certamente, a usos sociais, culturais e políticos da memória e, de acordo com Albuquerque Júnior (2019), o ato comemorativo não só se constitui num momento que se instaura uma memória, na qual a lembrança é voluntariamente convocada, é também um momento privilegiado para a proliferação de memórias para a elaboração de versões daquele que se comemora. Para analisar essas comemorações que envolvem o nome da escritora, é importante também problematizar as crônicas, escritas por ela, enquanto documentos privilegiados para problematizar as suas representações, as suas experiências e as suas opiniões. Entre os anos de 1988 e 1998, enquanto publicava textos no Caderno 2 de O Estado de São Paulo, a cronista passou a fazer um balanço de sua vida, parecendo forjar uma memória de si, a qual seria deixada para a posteridade, se afastando de todas as polêmicas políticas que marcaram a sua carreira, especialmente durante a ditadura civil militar. Essa postura da cronista foi bem comum no período de transição democrática no Brasil. A análise das trajetórias dos intelectuais que tentaram ressignificar suas obras, após a ditadura civil militar, abrem espaço para compreender a importância de pensar a redemocratização do Brasil a partir da produção escrita e não somente das discussões políticas. A partir de problemáticas como estas, esse texto se propõe analisar a escrita de si da escritora Rachel de Queiroz com base no seu projeto biográfico, forjado, tanto a partir do seu retorno aos periódicos em 1988 com a publicação de crônicas semanais, como em cartas, entrevistas, imagens e em seu livro autobiográfico, publicado em 1998. A intenção é analisar as narrativas construídas pela escritora, com suas operações de lembrança e esquecimento de determinados acontecimentos. A relevância do texto, diferenciando-o de outras importantes pesquisas sobre a autora, repousa na perspectiva teórica e metodológica que compõem sua problematização, ao imaginar a Rachel de Queiroz como uma personagem que, enquanto se diz testemunha do século XX, inventa um tempo e uma escrita de si própria, a fim de representar o tempo vivido com uma consciência invejável, mas imprimindo seu olhar subjetivo.
Palavras-chave: Rachel de Queiroz. Celebração biográfico. Escrita de si. Memória.