Há um razoável consenso, entre críticos da cultura e historiadores filiados aos mais distintos matizes, que o período que medeia os anos 1960/70 da história brasileira representa um dos momentos que congrega uma das mais profícuas produções artístico-culturais do último século. A validade da assertiva – que tem como um de seus parâmetros mais notáveis a profusão de experiências estéticas oriundas de variados segmentos –, fez-se acompanhar de farta produção discursiva, interessada em esquadrinhar as especificidades decorrentes desse contexto. Um dos principais elementos a ganhar relevo nessa nova configuração histórica foi a maneira de relacionar-se com o instante criativo, como a exemplificar o princípio de uma tensão irrevogável entre o modo como os sujeitos experienciavam o momento que viviam e as formas/suportes que estes usaram para exprimir essa sensação. É no âmbito desse rearranjo de paradigmas no cenário cultural brasileiro que assistimos a insurgência de obras de caráter marcadamente autoral, onde os frisos demarcatórios entre realidade, ficção e prática literária estão sendo continuadamente esgarçados. Mais que a busca por um telos e uma escrita ancorada em solo narrativo estável, algumas dessas propostas preferem singrar os mares revoltos do uso irregular e inabitual da língua. O sismo decorrente deste novo modelo de cartografia não por acaso se configura como uma linha de fuga, potencializando o movimento em uma espiral de imprevisíveis significados. Um caso singular desse modelo nas letras brasileiras são as obras da escritora Clarice Lispector Tendo em vista o caráter vanguardista – recusa de elementos herdados pela tradição, constituição de uma linguagem prospectiva de novos temas e elementos diccionais, bem como a utilização do fluxo de consciência como esteio da enunciação –, sua produção pode ser caracterizada como uma literatura menor, haja vista sua autonomia e antinomia em relação àqueles postulados pelas formas dominantes da narrativa literária vinculada ao cânone. Boa parte de suas obras, notadamente aquelas que vieram a ser publicadas entre o final dos anos 1960 e meados dos anos 1970, provocaram incômodo e estranhamento no público e, principalmente, na intelectualidade da época, dada a dificuldade em categorizar tais escritos dentre os gêneros literários sedimentados.
Palavras-chave: História. Literatura. Clarice Lispector.