A reflexão proposta para esta comunicação parte da inquietante tese formulada por Michel de Certeau num dos capítulos (terceiro) de História e psicanálise, segundo a qual a literatura pode ser tomada como um discurso teórico dos processos históricos. Em sua argumentação, Certeau propõe que ao dar acesso a uma “formalização” às operações de uma sociedade, a literatura “torna pensável” essas operações que, doutro modo, não teriam uma formalização que as torne pensáveis, e portanto observáveis, legíveis. Nessa perspectiva, entendo seja de relevância uma reflexão sobre a forma dessa literatura tomada como “discurso teórico” da história pela historiografia. Ou, dizendo doutro modo: que formalizações literárias servem à história enquanto teoria? Quais têm servido, quais têm sido descartadas? Somente textos literários que tratem da história e seus temas (questão de conteúdo)? Ou textos produzidos sem essa finalidade (de tratarem da história enquanto matéria e conteúdo) podem servir a esse intento de “tornar pensável”? Para nortear essa reflexão, toma-se aqui em análise o trabalho literário do escritor português Gonçalo Manuel Tavares (1970- ) em diálogo com a noção de “ficção teórica” presente no trabalho historiográfico de Michel de Certeau (1925-1986), que a foi buscar e desenvolver a partir do trabalho de Sigmund Freud. Tendo sempre em consideração a longa e velha querela de fronteira entre história e literatura, o que aqui se propõe, a partir da prática-pensante de um historiógrafo (Certeau) e de um literato (Tavares), é a possibilidade de se pensar como a “maneira” (a forma) do texto ficcional pode levar a que essa escrita possa tornar-se (ser leva a assumir uma função) teórica. Trata-se, assim, de refletir sobre como uma maneira de escrita pode configurar uma maneira de abordar, abrindo brechas em maneiras de pensar e escrever história. Em termos de análise, toma-se em consideração a obra de Gonçalo Tavares, especialmente (mas não apenas) seus livros Matteo perdeu o emprego (2010), O senhor Swedenborg e as investigações geométricas (2011) e Enciclopédia 1-2-3 (breves notas sobre ciência, breves notas sobre o medo, breves notas sobre as ligações (2012). Tratam-se de obras cuja maneira de escrita se faz por desenhos geométricos comentados, por narrativas breves ordenadas alfabeticamente, por breves textos-pensantes, não sendo, portanto, obras que tragam conteúdos propriamente (ou vistos como propriamente) históricos. Tratam-se de textos que assumem um caráter reflexivo, provocador, que deixam ler um intento teórico à medida que propõem ao leitor desvios ao pensamento estabelecido. “Talvez seja ingênuo exigir que uma linguagem declare para o que ela existe” (Michel de Certeau, La Prise de parole): nasceste para que utilidade? Se assim é, e considerando-se que teoria pressupõe linguagem, há que se ter em mente que, por vezes, é “esquecido da intenção [da utilidade], que o homem conhece” (Gonçalo M. Tavares, Enciclopédia 1-2-3). Na comunicação proposta, busca-se pensar como certos textos literários, não nascidos para utilidade da história, podem lhe ser de grande valia quando tomados como “ficções teóricas”.
Palavras-chave: Teoria da história. Ficções teóricas. História e literatura.