Em seu livro mais recente, Cassandra a Mogadiscio (2023), Igiaba Scego evoca a profetiza grega desde o título para indicar seu projeto político-literário: recontar a história colonial italiana na Somália. Enquanto Cassandra, filha do rei de Tróia, tinha a capacidade de predizer o futuro; a autora somali-italiana almeja prever o passado, para isso, resgata sua história familiar atravessada pelos trânsitos entre Roma e Mogadíscio. Se a princesa grega originou o “complexo de Cassandra”, que representa o silenciamento das mulheres; é através das vozes das personagens femininas, autobiográficas e ficcionais, que a escritora contesta os vestígios do fascismo italiano na experiência da diáspora somali. O objetivo desta comunicação é pontuar aspectos da história da Somália nos séculos XX e XXI, a partir de duas obras de Igiaba Scego: o livro de memórias “Minha casa é onde estou’ ([2010] 2018) e o romance “Adua” ([2015] 2018). Nas narrativas em questão, observa-se a representação da colonização da África Oriental Italiana (década de 1930), a independência e período democrático (1960-1969), a ditadura de Siad Barre (1969-1990) e a guerra civil na Somália (1991-atualmente); as quatro fases em questão são vivenciadas em diferentes aspectos pela família de Scego. Minha casa é onde estou constitui uma cartografia literária, na qual a escritora articula espaço biográfico (ARFUCH, 2010) e lugares de memória (NORA, 2012) na capital italiana, para refletir sobre a ferida colonial (KILOMBA, 2019). A escrita de Igiaba Scego é atravessada por sua escrevivência (EVARISTO, 2010) como filha de refugiados somalis, que chegaram à Itália na década de 1970, e seus constantes desafios como mulher negra no país. Já o romance Adua traz em seu título tanto o nome da protagonista -uma migrante somali – quanto o nome de uma batalha entre Itália e Etiópia, país vizinho à Somália. A batalha de Adua (1896) foi vencida pelos etíopes e entrou para história da África Oriental, por outro lado, alimentou o revanchismo italiano que atingiu seu ápice na guerra ítalo-etíope anos mais tarde, no governo de Benito Mussolini. Em Adua, os personagens apresentam resquícios das histórias familiares apresentadas em Minha casa é onde estou; trauma e testemunho (SELIGMANN-SILVA, 2008) se entrelaçam na tentativa de narrar a “guerra infinita” que assola a Somália, e seu efeito mais evidente: o crescente número de refugiados que atravessam o mar Mediterrâneo para chegar à Europa, e a necropolítica (MBEMBE, 2018) envolvendo o tratamento dispensado aos africanos. Desse modo, os dois livros elencados simbolizam questões recorrentes nas demais obras da autora, marcadas pelo constante exercício de combate à história única sobre África (ADICHIE, 2019). Em seu último livro, Scego (2023) ressalta que prédios onde eram mantidos documentos oficiais da história somali foram destruídos pelo conflito, que assola o país há mais de trinta anos. Assim, o principal arquivo da Somália é a memória dos sobreviventes.
Palavras-chave: Somália. Itália. Diáspora. Igiaba Scego. História.