O presente trabalho discute a possibilidade de determinadas críticas sociais terem maior repercussão e alcance através da literatura, seja por seu jeito envolvente de explicar o mundo como também pelo encontro dos sentimentos/emoções com os fatos históricos ali mencionados. Demonstrar-se-á tais operações pela história de Tituba, mulher negra escravizada e julgada por bruxaria em Salem em 1692 que ganhou pela romancista Maryse Condé novas origens e destinos dos quais a própria historiografia, o tempo e o racismo nos privou de conhecer. Relacionar-se-á como fonte histórica Malleus Maleficarum – O martelo das Feiticeiras, manual de Inquisição que teve ampla circulação na Europa do século XV e; o romance Eu, Tituba Bruxa Negra de Salem, que aborda a resistência aos dogmas cristãos frente às práticas tomadas como bruxaria pelos colonizadores e pela Inquisição, escravidão, patriarcado, colonização, puritanismo e suas práticas de dominação, sujeição ao trabalho e desencantamento do mundo transformando o desconhecido em medo e proximidade de Satanás. A centralidade da discussão estará nos processos inquisitoriais, nas acusações, nos meios probatórios e contextualização política dos julgamentos. Epistemes que se contrapõem nitidamente sobre o significado do termo bruxa, de pária à referência de poderes ocultos, evidencia dinâmicas de poder e luta de classes. Seguindo a receita de misturar fatos históricos e preenchê-los com ficção, a autora faz usos artísticos e políticos do passado, e nos apresenta um mundo vasto com a experiência subjetiva da personagem Tituba marcada pela diáspora e pela ancestralidade viva nos invisíveis, em seu espaço-tempo. A forma do romance já nos fornece significado, a narrativa se passa em primeira pessoa, sendo uma mulher negra escravizada em vida não teria autorização para falar livremente. Para essa discussão utilizou-se metodologia descritiva e exploratória através de pesquisa bibliográfica. Entre os resultados estão correspondências historiográficas entre as prescrições do Malleus Maleficarum e as descrições e narrativas contidas no romance Eu, Tituba, bruxa negra de Salem, em relação por exemplo às acusações, procedimentos de investigação e tortura. Ali as camadas do tempo ficam sobrepostas também pelo próprio livro, já que ao publicar em 1986 Eu, Tituba Bruxa Negra de Salem Maryse Condé leva para o século XV seu olhar e percepções do século XXI, demonstrando por exemplo limites entre solidariedade/sororidade e branquitude. Conclui-se nestas operações narrativas e de pesquisa historiográfica que o romance alarga e aproxima camadas diferentes da história, reequaciona as relações entre passado e presente, e em sua artesania privilegia a oralidade, marcadamente pela contação de histórias, cantigas e poesia. Além disso, a protagonista contando sua própria vida enfrenta obstáculos para falar e ser ouvida dentro do regime repressivo do colonialismo e do racismo, ainda atual às mulheres, principalmente as mulheres negras, oferecendo assim, um desagravo à Tituba, pessoa histórica. Ainda, que o desagravo não a alcance, a narrativa que Maryse Condé constrói encontra força e razão frente às experiências cotidianas de perseguição, sofrimento, solidão e silenciamento que ecoam vividamente no presente.
Palavras-chave: Bruxaria. Literatura. Mulher negra. Salem.